O contador de histórias

29/07/2016

Um bom contador de histórias é aquele que capricha nos detalhes. O Coordenador de Disciplina João Bosco Ribeiro de Sousa é dono de um talento singular. Primeiro porque seu repertório é vasto, só no Santa Cecília são quase 40 anos de trabalho intenso. Depois porque é um exímio observador das coisas do mundo, dos comportamentos, da conjuntura...

O coordenador, advogado de formação, muitas vezes temido pela “turma da bagunça”, guarda em si um contundente senso de justiça: “Nunca puni um aluno de primeira vez”. E é reconhecido por isso, a ponto de os encontros inusitados e furtivos que acontecem com ex-alunos, Brasil afora, resultarem em abraços calorosos e conversas passando a vida a limpo.

É notório, nestes tempos atuais, que o professor Bosco foi amolecendo o coração. Ele hoje escuta mais, compreende melhor, mas é intransigente na necessidade de impor limites imprescindíveis à formação de cidadãos.

Fisgar o Bosco para uma entrevista não foi nada fácil. Ele sempre dava um jeito de escapar, driblava a conversa com seu bom humor irônico e característico.
Valeu esperar.
        
Interatividade – Bosco, você sempre foi considerado um coordenador rigoroso. O que mudou no seu modo de agir ao longo destes quase quarenta anos?

Bosco – Eu entrei no Santa Cecília em abril de 1977, há 39 anos. Eu já era professor de OSPB quando a Madre Marie Gabrielle, que era a Superiora, sentou comigo e disse: “Bosco, estamos vivendo uma experiência nova, que é aceitar rapazes, e gostaríamos de convidá-lo a assumir uma coordenação nova ligada à disciplina”. O meu primeiro ano foi muito difícil porque eu tinha que ir de A a Z. Então eu procurei, nos seis primeiros meses, conhecer melhor os alunos e, depois disso, passei a chamá-los para conversar e percebi que o que faltava a eles eu poderia dar: disciplina e fazer cumprir a palavra empenhada. Chutar o colega, por exemplo, não faz parte do jogo. Faz parte do jogo chutar a bola. E dizia: “Se voltar a fazer isso, eu não converso mais com você sobre o assunto, a primeira coisa que faço é tirá-lo do esporte que gosta muito. Você vai passar uma semana, um mês ausente da quadra, vendo da arquibancada e pensando: não estou aí porque, em vez de chutar a bola, estou chutando o colega”. E isso foi se disseminando.

I – E essa negociação, como se dava, tanto com os alunos como com as famílias?

B – Eu sempre dei a primeira chance de conversar, escutar. Agora, quando você reincide, é o momento de impor limites. E tive que lidar com muitas situações. Pais que discordavam, outros que  concordavam e os que agiam como advogados dos filhos. Estes eram os que davam mais trabalho e, em regra geral, eram os mais ausentes. Eu sempre dizia a eles que esta Escola, o Santa Cecília, não ensinava só física e química, ela ensinava também para a vida. Talvez essa imagem de coordenador rigoroso tenha a ver com o fato de eu sempre ter levado muito a sério aquilo que eu fazia. O aluno brincava, errava, vinha à coordenação, explicava-se, eu entendia ou não, mas eu nunca puni um aluno de primeira vez. Agora, ele saía daqui sabendo que, se houvesse a reincidência, tranquilamente ele iria ser punido, e a punição não era exagerada, era para fazê-lo pensar porque perdeu. Você tirar um cara que gosta de jogar bola de uma quadra de esporte é fazer com que ele necessariamente pense no que fez.

I – Foram muitas gerações que passaram por você. Como são os reencontros?

B – São muito bons. Não só com os que são pais de alunos hoje, mas com os que estão lá fora, que às vezes eu encontro. Vez por outra, estou com minha mulher jantando, em algum lugar, e ela alerta que tem alguém olhando para mim e, geralmente, eles vêm me cumprimentar calorosamente. Mesmo os alunos que me deram mais trabalho nunca me faltaram com respeito nesta Escola. Eu digo muito para eles, não sou simpático. Se houvesse concurso de miss, eu tiraria o último lugar; embora enfático, não sou grosseiro. Quando um aluno é retirado de sala, eu peço ao professor que encaminhe a justificativa por escrito para que eu possa informar às famílias. Não deixo brechas. Tem uma história curiosa: eu tive um aluno aqui na Escola que me deu certo trabalho. Ele terminou e eu não tive mais contato. Certa vez, eu estava em um voo voltando de São Paulo e a comissária de bordo chegou perto e perguntou: “O senhor é o professor Bosco? Poderia comparecer à cabine, por gentileza”. Me espantei, mas fui. Quando entrei, o copiloto levantou da cadeira e me deu um abraço. Demorei um pouco a reconhecer que era aquele aluno que tinha me dado trabalho e fizemos o percurso relembrando. Eu falei: “Está vendo como aqueles “puxavões” serviram de alguma coisa? Hoje você é responsável pela vida de muita gente”.

I – A relação com os alunos mais trabalhosos era mais intensa, não?

B – Era sim, mas eu nunca gostei desta ideia de “esse não vai dar pra nada”. Aos que me deram mais trabalho, dediquei mais tempo conversando. Foram os que mais me marcaram. Até as questões amorosas chegavam à minha sala. Fui procurado por um aluno que tinha se apaixonado por uma colega de sala e não sabia o que fazer. Resumindo, o namoro engatou, mas ela saiu para um intercâmbio e ele sofreu muito. Anos depois, nos reencontramos em um shopping e ele veio me dizer que casou com aquela menina, a primeira paixão adolescente, e que viviam muito bem, já tinham quatro anos de casados e um bebê. Você fica muito feliz quando encontra esses meninos bem projetados.

I – Quais foram os maiores desafios?

B – Mediar conflitos entre as pessoas é sempre difícil. Por incrível que pareça, os alunos em si são os menos trabalhosos. Eu particularmente me afeiçoei a um menino cujo pai tinha uma fazenda em Caxias, no interior do Maranhão, um bom poder aquisitivo e veio morar aqui. Esse menino não gostava de estudar, dava trabalho, nunca foi suspenso por desrespeito a professor, mas deixava claro que não gostava de estudar nem de viver aqui, era obrigado. Ele chegou a me dizer isso algumas vezes e eu resolvi intermediar com o pai. No fim do ano, foi reprovado pela segunda vez. Quando o pai veio, eu fui claro: “O seu filho não gosta de viver aqui, gosta do lugar de origem, da fazenda. O pai, que era muito bem de vida, mas semianalfabeto, não queria aquilo para o filho, mas resolveram conversar. O tempo passou e eu perdi notícias. Anos depois, na missa de conclusão da irmã mais nova, eu fui chamado lá fora e estava ele e o pai. Um homem forte, a pele curtida de sol, ele me deu um abraço e disse que era muito feliz fazendo o  que gostava. Foi um aluno que me marcou, eu não o tirei da Escola, mas fiquei feliz quando saiu para seguir o seu destino.    

I – Gerações passaram por você. O que mudou no seu modo de olhar para esses adolescentes?

B – Sinceramente, não olho para este jovem de hoje como olhava tempos atrás. Eu acho que boa parte deles é extremamente carente. Carente de afeto doméstico, carente de afeto na escola... Quando você chama um deles para conversar, ele já passou pela coordenação, a família já esteve na escola, já assinou termo de compromisso, chegou o momento de tomar um período maior de suspensão ou ser desligado da Escola. Às vezes, mudar de instituição é um recomeço. Ele já fez tanta propaganda negativa de si que fica muito difícil reconstituir os laços. Felizmente, o desligamento do aluno acontece raramente. Mas fazendo esta análise comparativa, eu diria que antes as conversas eram rápidas, extremamente objetivas, e naquela época funcionava bem, e as punições também eram bem objetivas. Hoje somos mais subjetivos, escutamos mais; e o aluno, quando chega, não discute só aquele problema, se você perguntar muita coisa, desencadeiam-se as relações pessoais, com a família...   

I – No que o aluno do Santa Cecília se diferencia, na sua opinião?

B – Grande parte dos alunos que chega hoje à Escola toma como referência outros que já passaram por aqui. Ele já vem com referências afetivas. É fácil descobrir que o Santa Cecília é uma escola diferente. Além de ser pedagogicamente muito boa, a formação é muito consistente e este acompanhamento vai até o 3º ano do Ensino Médio. É fácil trabalhar aqui.   

I – Os seus dois filhos estudaram aqui. Como era essa convivência no ambiente de trabalho?

B – Eles eram e são dois filhos maravilhosos. O Bruno hoje é professor no Curso de Odontologia da Universidade Federal do Ceará e atende em consultório, além de ser um bom atleta; e o Davi é advogado de um grupo multinacional. Os dois eram estudantes como outros quaisquer e eram tratados não pelo pai, mas pelo coordenador com o mesmo rigor que eu tratava os outros. Não teve benesses para nenhum deles. Eu sou muito família, e os momentos de intimidade são muito bons, ainda mais agora que tenho três netos – Marina, João e Elisa – nem se fala (risos). O ideal seria que sempre estivéssemos juntos nos finais de semana, mas, como cada um tem a sua vida, fica difícil. Mas nos reunimos na Praia do Morro Branco, e nesse dia só falto colocar uma placa na porta lá de casa: “família reunida, não perturbe”. 

I – Nesses 40 anos, o que você faria de diferente?

B – Eu acho que as coisas aconteceram no seu tempo, como deveriam acontecer. A única coisa  de que me arrependo é não ter aprendido a tocar violão. Minha mãe me dizia: “Se você tivesse aprendido a tocar, talvez hoje fosse um cantor frustrado ou alguém da mídia (risos)”.

I – Como vai a vida hoje?

B – Muito boa. Acredito nas pessoas de um modo geral. E não penso em parar de trabalhar, embora já tenha me aposentado. Enquanto eu for útil a esta instituição a qual dediquei 39 anos da minha vida, estarei aqui, porque ela me é útil. Eu me sinto muito bem no Santa Cecília. Mesmo atravessando um problema de saúde, fugi do protocolo médico e voltei a trabalhar. Nada melhor do que se sentir útil. O livro da minha vida já está escrito. Cada vez que converso com alguém é mais um capítulo finalizado. É um livro de passagem de costumes.

Fonte: Revista Interatividade

 

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